domingo, 29 de julho de 2007

ESTIO (2002)

Mulheres negras seguiam a Rota da Morte até o Mediterrâneo para ali serem vendidas como escravas. De Kukawa a Trípoli, através da Nigéria, Níger e Líbia, um caminho manchado de sangue, coalhado de ossos humanos. Só as mais fortes sobreviviam à marcha de 100 dias através do deserto.




1.
YO

Planície,
reino de águas virgens,
à beira do Chade,
às margens do rio
que corre.
Caminho para a morte
ou para a vida.
Terras até o mar,
sem fim.

2.
BOSSO

Ainda o deserto.
Nenhum destino traçado,
nenhuma voz no caminho.
Solidão do sol
e vastidão da noite.
Erguida sobre mim mesma,
avanço sobre o nada.

3.
AGADEM

Vê,
eu e minha fala surda.
Oro para que meus pés
caminhem.
Oro para morrer e não ver
amanhecer outro dia.
Para que serve um corpo
que somente caminha?

4.
DIBBELA

Oásis de mil folhas,
camelos tocam a seca nervura,
os olhos abertos sobre a areia.
Cavernas vertendo águas:
pequenos lagos
de minha grande sede.

5.
BILMA

Não há fogo.
A noite estrelada.
Passo calcário e frio,
não ouço mais
minha voz,
eu sem mim,
em abandono.

6.
ANAÍ

Cubra-me com teu sono e velas.
Caravanas sem homens,
chicotes a lanhar o lombo.
Sangue, meu sangue.
Venço a morte,
vivendo.

7.
YEGEBA

Esqueço-me de onde vim.
Minha terra de águas e folhas.
Ressaca em minha memória.
Tenho as mãos secas e nuas.
Meu corpo
antigo.

8.
YAT

Dunas avançam à frente
de um tempo escasso.
Avanço,
imóvel,
sob as sombras.

9.
MAFARAS

Algozes, tolos sem alma.
Para onde vou
que não sei?
Aguardo a vida
se desdobrar
ou se recolher à vereda
como cobra.

10.
TOUMMO

Esse mar de que falam
ao fim da terra,
água verde de pedras raras,
contém o azul dos céus
e a cor das horas.
Carregai-me.

11.
TEJERRI

Partidas são hiatos de vida,
jejuns de minha alma.
Foice e dor
aguda.

12.
AL QATRUN

Caminhamos
sem o deserto.
A trilha se esgota
antes que eu a atinja.
Não sei mais
o que procurar
e o que encontrei
sei menos ainda.

13.
MESTUTA

A alma se esconde
para me ver.
Sonho ruidoso
de morte.
Meu corpo e sombra
: aragem dissipando
a névoa.

14.
MARZUQ

Meu coração
é o deserto.
Sopram os ventos
em todas as direções,
entre ruínas mal-assombradas
e caravanas pelo Saara.
Cem dias de caminho
: mar de areia
e agonia.

15.
AGHAR

Que outras vastidões haverá
sem água
e oásis distantes?
Poços guardados,
relíquia
e festim.

16.
TUAREK

Escorpiões
cortam a areia
enchendo-a de nódoas
e feridas.
Todos caminham para a morte.
Por nós, 
passam
como passamos
por eles.

17.
TAKARTIBAH

Comem tâmaras
e deixam as sementes
para a semeadura.
Lagos surgem entre
dunas de miragem.
Desço 
meus pés
sobre a bruma líquida
e o delírio.

18.
WEINA

Rastros de girafas
e elefantes desaparecidos
rondam à nossa volta.
Neste oásis abandonado,
almas de homens
e animais passados.
Um leito de lagos secos
e sombras.
Curva das mãos
sob a agudeza
do sol.

19.

HAMADA AL HAMRA

Sob a névoa úmida,
sem mais estrelas,
avançávamos 
sós
para noites
cada vez mais frias.
Pássaros
singram sobre as areias
por onde passamos
invisíveis.

20.
MIZDAH

Nasci com as coisas vivas
para estar entre elas.
O vento corta as areias
abrindo sulcos 
à sua passagem.
Nada vive entre as pedras.
Nada vive para testemunhar
que estamos 
aqui.

21.
GHARIAN

Borboletas
e libélulas migram
acima das cabeças.
Tivesse asas
para me elevar
nessas planuras
e habitar um oásis
em segredo.
Ó dor feita
de carne
e destino!

22.
TRÍPOLI

Saímos do deserto
e largamos a alma
para trás.
Abandonamos
o sol 
e a noite escura.
Deixamos a areia
e vamos ao encontro
do mar
e dos peixes.

24/12/2002 – 3h08 – 30/12/2002 – 14h20